segunda-feira, outubro 24, 2011

No balanço da razão

Ninguém salva
Mas salvar o quê?
Salvar a vida?
Trazer de volta
O conforto
O gozo
Sem frustração?

Quer ser único?
Mas como
No meio de muitos
Somos fracos
Precisamos de alguns tragos
Precisamos de silicone
Precisamos de emoção

Quero gente
Mas tem que ser de verdade
Gente de carne
Gente de fases
Com alma e coração
Com defeito e contradição
Pra que alcançar a perfeição?

Não quero
Nada certo
Quero o incerto
Quero o desejo
Quero despertar
Para uma nova feição

Sonho, coração, dedicação
Cadê a Bete
No balanço de uma canção
Que faça sentido
Sem contenção
Mas com realização

sábado, outubro 08, 2011

Florbela Spanca

Florbela Spanca
"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!"

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"Perdoo facilmente as ofensas, mas por indiferença e desdém: nada que me vem dos outros me toca profundamente."


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"Estou cansada, cada vez mais incompreendida e insatisfeita comigo, com a vida e com os outros. Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isto que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive..."


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"Pena é não haver um manicómio para corações, que para cabeças há muitos."

quinta-feira, outubro 06, 2011

Ausência (Carlos Drummond de Andrade)

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

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O Homem PerfeitoA virtude subdivide-se em quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o medo, tomar as decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido. Concebemos assim as noções de temperança, de coragem, de prudência e de justiça, cada qual comportando os seus deveres específicos. A partir de quê, então, concebemos nós a virtude? O que no-la revela é a ordem por ela própria estabelecida, o decoro, a firmeza de princípios, a total harmonia de todos os seus actos, a grandeza que a eleva acima de todas as contingências. A partir daqui concebemos o ideal de uma vida feliz, fluindo segundo um curso inalterável, com total domínio sobre si mesma. E como é que este ideal aparece aos nossos olhos? Vou dizer-te.
O homem perfeito, possuidor da virtude, nunca se queixa da fortuna, nunca aceita os acontecimentos de mau humor, pelo contrário, convicto de ser um cidadão do universo, um soldado pronto a tudo, aceita as dificuldades como uma missão que lhes é confiada. Não se revolta ante as desgraças como se elas fossem um mal originado pelo azar, mas como uma tarefa de que ele é encarregado. «Suceda o que suceder», — diz ele — «o caso é comigo; por muito áspera e dura que seja a situação, tenho de dar o meu melhor!» Um homem que nunca se queixa dos seus males nem se lamenta do destino, temos forçosamente de julgá-lo um grande homem! Tal homem dá a conhecer a muitos outros a massa de que é feito, brilha tal como um archote no meio das trevas, atrai para junto de si todas as almas, dada a sua impassível tranquilidade, a sua completa equanimidade para com o divino e o humano. Tal homem possui uma alma perfeita, levada ao máximo das suas potencialidades, tal que acima dela nada há senão a inteligência divina, uma parte da qual, aliás, transitou até este peito mortal. E nada há de mais divino para o homem do que meditar na sua mortalidade, consciencializar-se de que o homem nasce para ao fim de algum tempo deixar esta vida, perceber que o nosso corpo não é uma morada fixa, mas uma estalagem onde só se pode permanecer por breve tempo, uma estalagem de que é preciso sair quando percebemos que estamos a ser pesados ao estalajadeiro.

Séneca, in "Cartas a Lucílio"

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O Absurdo do Cúmulo da FelicidadeAgora pergunto-lhe: o que podemos esperar do homem enquanto criatura dotada de tão estranhas qualidades? Faça chover sobre ele todos os tipos de bênçãos terrenas; submerja-o em felicidade até acima da cabeça, de modo que só pequenas bolhas apareçam na superfície dessa felicidade, como se em água; dê a ele uma prosperidade económica tamanha que nada mais lhe reste para ser feito, excepto dormir, comer pão-de-ló e preocupar-se com a continuação da história mundial — mesmo assim, por pura ingratidão, por exclusiva perversidade, ele vai cometer algum acto repulsivo. Ele até mesmo arriscará perder o seu pão-de-ló e desejará intencionalmente o mais depravado lodo, o mais antieconómico absurdo, simplesmente a fim de injectar o seu fantástico e pernicioso elemento no âmago de toda essa racionalidade positiva.

Fiodor Dostoievski, in "Notas do Subterrâneo"