quinta-feira, agosto 31, 2006

Conto - Balada no Centro

Balada no Centro

Por Bixxcoito

Em um sábado qualquer, acordei assustada, quase meia-noite. Tinha marcado de sair com um amigo e decidi dar uma "cochiladinha" para recuperar as forças. Samba-rock era o meu foco. Dançar a noite inteira para espantar os males. Acordar atrasada já era um mau presságio. No entanto, eu não quis perceber.

Arrumei-me depressa e caminhei até o Metrô. Cidade deserta. Mais uma vez pensei: "Eu não devia estar aqui". Meu espírito agitado continuou, meu sexto sentido ficou em último. Percebam no que deu.

Quando peguei o trem, escutei alguém me chamar.

- Amiga! Amiga! Você poderia me ajudar? - um homem (afinal para ser gay é preciso ser muito homem para agüentar preconceitos) veio me pedir informação.

- Preciso ir para Barra Funda. Não tenho a menor idéia de como faço - explicou o homem que distinguirei por faixa na cabeça.

- Vocês precisam descer na estação tal e pegar estação tal... - tentei explicar.

- Não, não. Eu me enrolo toda! Sempre me explicam e eu não consigo andar de jeito nenhum em tantas linhas do Metrô - relatou o homem de faixa.

Decidi, então, ajudar ativamente. Calma, sugeri que eles (as) me acompanhassem. Eu ia descer duas estações antes da deles. Durante o trajeto, o homem de faixa não conseguiu ficar quieto, muito menos calado.

- Amiga, eu tô o bagaço. Só consegui sair hoje porque dormi um pouco na parte da tarde. Trabalho como assistente de cabeleireiro. Isto quer dizer que trabalho aos sábados também! Estou acabando comigo. Vivo na esbórnia! - concluiu, ao mesmo tempo em que sentava no corrimão da escada rolante como se tivesse praticando algum esporte radical.

Por ter vários amigos homossexuais, previ que o homem de faixa e seu primo iriam para Blue Space, boate gay perto da Barra Funda. Quando conquistei mais intimidade, pude ver que minhas suspeitas estavam corretas.

- Amiga, fiquei numa indecisão! Tive que pedir ajuda à mamãe! Não sabia se deveria usar lente de contato verde ou a azul. Mamãe disse que a verde ficava mais natural. Você percebeu que estou de lente? – perguntou o homem de faixa. Eu, claro, disse que não tinha percebido.

Ao chegar na estação que pretendia descer, logo despedi dos amigos. O homem da faixa quis saber para onde eu ia. Disse que ia para o Copan* dançar samba-rock.

- Amiga, acho que vou liberar meu primo e ir para balada com você! Adoro samba-rock - respondeu o homem de faixa. Dei um sorriso misterioso. Ele ainda teve coragem de pedir meu telefone.

Começar uma balada com um gay eufórico pedindo o celular não é um bom presságio. Mas continuei ignorando. Cheguei afinal no Copan.

Em pouco tempo, constatei que eu estava no meio de uma roda, quase que de samba. Tinha direito a um “globeleza” (sim, "um" no masculino. Não quer dizer que seja gay), duas mulheres, uma feminina e outra nem tanto, e um homem bem normal. A feminina, digamos assim, ficou no meu pé a noite inteira. A princípio achei que era ciúme do homem. Depois percebi que não. A feminina não era tão feminina assim. Ela puxava assunto toda hora.

Um exemplo foi quando começou a música "Eu bebo sim" da Elizeth Cardoso que o refrão é mais ou menos assim: "Eu bebo sim. Estou vivendo. Tem gente que não bebe e está morrendo. Eu bebo, sim". Um coro no fundo completa: "Água faz mal a saúde. Bebida não faz mal a ninguém".

Sempre que toca essa música fico com ciúmes! Queria ter escrito. Mas criaram a letra antes de eu nascer, fazer o quê. Bom, a questão foi; começou e eu gritei:

– Adoro essa música! É a minha cara!

A feminina logo complementou berrando ao mesmo tempo:

– Eu também! Olha o meu cabelo sarará - comentou.

Na verdade, ela achou que era outra música, “Sarará Criolo” da Sandra de Sá. Coitada, ficou sem graça quando percebeu o equívoco. Ela tinha sido tão espontânea que não dava para passar desapercebido. Mulher tem mania de soltar seus pontos-fracos. Dei uma risada e continuei a dançar.

Logo após, três carinhas começaram a me paquerar. Ela enfiou-se no meio de forma que bloqueou a visão de todos. Neste momento, não tive dúvidas. Ela me queria.
Fiz uma cara de bicho, de quem não gostou nem um pouco, que a feminina, que já dava as costas para os outros amigos pra dançar comigo, saiu de perto. Entretanto, o amigo homem teve certeza de que eu era heterossexual. Achou instantaneamente uma brecha para iniciar papo. Sim, agora é assim. A mulherada está tomando a frente nas baladas. O homem senta e espera a sua vez.
O tema, como sempre, era "carioca'. Vale lembrar que sou uma carioca perdida em São Paulo há alguns anos. Quando abro a boca, não tem como passar despercebida a minha naturalidade.

Iniciou a conversa da seguinte forma: "Você é do Rio? Nossa! Que legal! Carioca de onde?". Jesus! Carioca só pode ser da cidade do Rio de Janeiro. Se for do Estado, é fluminense. Dei mais um sorriso misterioso e respondi que era da cidade do Rio de Janeiro, especificamente do bairro de Vila Isabel. A partir de então, um show à parte começou. Ele emendou com papo de Noel Rosa, cantou samba enredo da escola de samba Vila Isabel deste ano que nem mesmo eu sei a letra, entre outras gafes.

Só tive a capacidade de olhar para um amigo que me acompanhava na trajetória e implorar para que fossemos dar uma volta. Em pouco tempo, fomos embora. Não era dia de “pegar ninguém”.
No momento em que chegávamos novamente perto do Metrô, outra cena incrível. Um cara de terno e gravada deixou o carro largado, e aberto, no meio da rua para brigar com uma mulher. Pelo que percebi, ele lutava para reaver o celular. Foi um escândalo. Pouco tempo depois, percebi que a mulher na verdade não era ELA, era ELE, um travesti. Que baixaria!

As pessoas ficaram apreensivas, em primeira instância. Depois, todos estavam rindo. Com direito a ameaça de morte com pedra (travesti), gritaria durante a negociação da recompra do celular por R$ 500 (engravatado) e pedido de socorro a policiais que ignoraram a cena por um bom tempo.

Eu já estava com pena do travesti. Acreditei na inocência dele. Achava que era paranóia do engravatado, que bebeu todas em um inferninho do centro de São Paulo e perdeu o aparelho. É claro que a tendência é colocarmos a culpa no travesti. Mas quem procurou “sarna” pra se coçar foi ele. E o pior: ele lutava pelo celular enquanto o carro, muito mais caro, estava largado. Desconfiei que era o vibrador do telefone que ele realmente sentia falta. Ou da mulher dele ligar e o travesti atender. Vixe, bafão.

Como em um dos contos de Nelson Rodrigues, meia hora depois, quando a situação já estava normalizada com a ajuda de policiais, apareceu o travesti novamente. Para minha surpresa, ele voltou com uma amiga (o) . Parou próximo do local e começou a revirar um latão de lixo. Estava procurando por algo. Em pouco tempo, ele comemorava a vitória com o celular em mãos. Ele havia conseguido enrolar o engravatado.
Quando finalmente cheguei em casa, tive a sensação de que não saí para dançar. Que tinha visto um desenho animado. Terminei a noite concordando com o dito popular: "O mundo é gay e eu faço parte dele".

* prédio antigo no Centro de São Paulo onde é realizado o projeto Sambacana, onde DJs tocam samba-rock a noite inteira, de quinze em quinze dias.

5/07/2006.

Nenhum comentário: